Domestic-violence-under-lockdown.jpg

Aplicativos contra outra epidemia: violência doméstica

Apps ajudam no combate a agressividade domiciliar

Parte das pessoas que estão lendo esse texto são protagonistas, testemunhas, vítimas ou somente observadoras da violência doméstica. Podem ser algozes, que agridem filhos, pais, cônjuges, vizinhos ou até uma cafeteira mal educada que resolveu queimar na quarentena, ou podem ser “cafeteiras” que dormem e acordam com medo de sociopatas, embriagados ou somente angustiados pandêmicos. Não importa de que lado da estatística estamos, só importa que o problema da violência doméstica é bem mais grave (e antigo) do que a  violência da Covid-19. A cada ano, cerca de 1,3 milhão de mulheres são agredidas no Brasil, segundo dados de 2009 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Se há dez anos o problema era hiperbólico, hoje não é menor, e as mulheres continuam no centro da barbárie. O bulling físico, moral ou verbal não diminuiu com a ascensão social e profissional da mulher, como mostra o trabalho publicado em 2019 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): o índice de violência contra aquelas que integram a população economicamente ativa (52,2%) é praticamente o dobro do registrado pelas que não compõem o mercado de trabalho (24,9%). Talvez o dado mais constrangedor seja da própria ONU, onde seu relatório “O Progresso das Mulheres no Mundo 2019-2020” mostra que 17,8% das mulheres no mundo (uma em cada cinco) relataram violência física ou sexual de seus companheiros nos últimos 12 meses. A pandemia só aumentou o volume de agressividade: a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos informou que as denúncias de violência doméstica contra mulheres cresceram em abril perto de 28%.

Se durante décadas a linha ‘telefônica de denúncia’ foi a única dimensão para aliviar o drama, hoje uma arma tecnológica tem sido cada vez mais utilizada para reduzir a sangria: os aplicativos digitais contra abuso doméstico (safety-apps). Cresceram em quantidade e funcionalidades, sendo que nos últimos três meses centenas de novos lançamentos chegaram ao mercado global. Na esteira da expansão dos dispositivos digitais conectados a IoT, como os assistentes virtuais (Alexa, Siri, Google Home, etc.), ou os non-humanoid robots (bots), ou as lâmpadas inteligentes, chaleiras automáticas, câmeras de segurança, alertas de sinais vitais, etc., os safety-apps está entrando pelos smartphones e chegando a residência de milhões de vítimas. O portal SpringOut, por exemplo, lançado no Canadá em abril, é um instrumento discreto para as vítimas acessarem recursos de ajuda, especialmente durante o período de distanciamento físico (a Covid-19 aumentou de 20 a 30% as taxas de violência doméstica em algumas regiões do Canadá). O ponto de entrada para os usuários está no bot Slack, que envia informações básicas mantendo a privacidade e a segurança dos dados. O bot é silencioso, está baseado em smartphones e tem capacidade de manobra, ou seja, disfarça o acesso do usuário como se o aplicativo estivesse numa página de jardinagem ou culinária. Essa ‘identificação de fachada’ está conectada aos programas de Assistência ao Empregado (EAP), que recebem o alerta e entram com ações emergenciais. O SpringOut foi um dos projetos vencedores do BCIT Computing, um dos mais importantes hackathons da América do Norte, realizado em abril último. 

No Brasil, o projeto Âmago passou a ser fundamental em crises pandêmicas domiciliares. Trata-se de um botão de pânico para mulheres vítimas de violência doméstica, distribuído gratuitamente, e que em três segundos informa até cinco pessoas de confiança da vítima sobre a ocorrência. Conectado por bluetooth ao aplicativo, quando acionado o botão envia sua localização e a mensagem de alerta aos cadastrados. Aliás, os botões de alarme tornaram-se uma das mais eficientes tecnologias no combate a violência doméstica. Discretos, podem ser usados como pulseiras, colares ou um broche preso à roupa. Basta pressionar para gerar uma chamada a um Centro de Monitoramento. Devido ao aumento dos incidentes, as linhas telefônicas de auxílio a prevenção da violência domiciliar (no Brasil, ligar no 180, na Central de Atendimento à Mulher) cresceram por todos os cantos urbanos do mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde, todos os estados membros relataram em abril um aumento de 60% nas chamadas de emergência de mulheres sujeitas a violência de seus parceiros. O aplicativo de mensagens Snapchat, por exemplo, decidiu fornecer recursos para que as pessoas lembrem que as vítimas precisam ser discretas, ‘teatrais’ e até aplicar mentiras para escapar da violência (recurso "Here For You"). Todo esse disfarce é imprescindível em tempos digitais: os agressores passaram a ser vigilantes investigadores do parceiro(a). Se a tecnologia digital representa uma proteção à vítima, pode representar também uma ameaça.  "Os agressores precisam tirar o poder das vítimas", diz Brandy Dieterle, professora da University of Florida que estuda há anos a ‘retórica digital’ e a violência doméstica. "Como estamos tecnologicamente conectados, o controle da vítima passou a ser uma arma para o agressor”, explica ela. O uso de spyware é comum entre os agressores experientes em tecnologia, mas o abusador não precisa ser tão sofisticado: muitos conhecem todas as senhas da vítima e monitoram suas mensagens de texto, e-mails e chats. Em 2018, um dos primeiros casos judiciais conhecidos por abuso doméstico relacionado à IoT foi o de Ross Cairns, que pegou 11 meses de prisão por espionar a esposa com microfones, câmeras e luzes noturnas. 

O aplicativo Proteja Brasil, desenvolvido pela Unicef e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, permite à usuária fazer denúncias, localizar órgãos de proteção nas principais capitais e se informar sobre seus direitos e os diferentes tipos de violações. Trata-se de uma ferramenta de grande valor na proteção da vítima, mas não está imune a investigação do agressor. Outro aplicativo nacional ‘camuflador’ é um assistente virtual (“Programa Você Não Está Sozinha”) resultado da parceria entre o Instituto Avon, o Uber e a agência de publicidade Wieden+Kennedy. Foi criado com a ideia de criar uma identidade falsa para que a vítima possa se camuflar entre seus contatos, propiciando uma ligação à Central que lhe dá acolhimento. Um número é disponibilizado via Whatsapp (11–944942415) que responde a perguntas e identifica o grau de risco, recebendo a vítima algum suporte emergencial. Se a agressão for consumada e a vítima necessitar de um hospital ou delegacia, o Uber garante o deslocamento. Na França, por exemplo, as mulheres estão usando 'palavras-código' nas farmácias que representam um 'sinal de alerta' de abuso doméstico. 

Os novos aplicativos de proteção serão muito mais sofisticados e dotados de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina. O Hollie Guard, por exemplo, fornece inúmeras outras funcionalidades, podendo definir vários níveis extras de proteção diretamente dentro do aplicativo. Em seu “Modo Dissuasivo” a ideia é mostrar ao agressor que um alerta foi acionado e o risco de um ataque será monitorado. A localização GPS é acionada, bem como imagens de áudio/vídeo passam a funcionar armazenando dados para reunir evidências contra o agressor. Um toque no celular gera um alarme estridente e uma luz intermitente para atrair ajuda. No “Modo Furtivo” (Stealth) tudo ocorre de forma silenciosa e discreta, aparecendo uma tela ‘inicial-padrão’ no aparelho para que o abusador não desconfie, sendo também acionado o alarme sem qualquer áudio. A apresentadora da BBC Alex Lovell relatou recentemente que aplicativo Hollie Guard lhe proporcionou grande conforto e segurança durante os dois anos em que esteva ameaçada de estupro por Gordon Hawthorn, de 68 anos. O aplicativo foi desenvolvido após o assassinato de Hollie Gazzard, que tinha 20 anos e foi esfaqueada várias vezes em 2014 por seu ex-namorado (condenado a 24 anos de prisão). Confira o aplicativo no vídeo [2].

A violência doméstica nas classes menos privilegiadas é notoriamente mais difícil de rastrear: apenas metade das vítimas chama a polícia. Na pandemia, tolerar o abuso passou a ser mais comum quando a alternativa é se mudar para um abrigo onde as vítimas e filhos podem estar expostos ao coronavírus, ou quando o agressor é o principal ganha-pão da família. As mulheres ficam porque têm medo de sair, e só saem quando o pânico de ficar põem em risco a sobrevivência. Porem, com os cônjuges em casa pelo distanciamento social, as ameaças se multiplicam (segundo o Instituto Maria da Penha houve um aumento de até 50% em alguns Estados durante o distanciamento social). Certamente que as tipificações de abuso doméstico não excluem a violência de gênero, de idosos, de crianças, ou mesmo de mulheres contra homens. Temos agressores para todos os gostos. Ao contrário do que possa parecer, o abuso doméstico sempre será um sinal da falência do agressor, estando diretamente ligado ao poder. É simples: as pessoas se tornam violentas quando passam a ser impotentes diante dos outros. Pensam que ficam mais poderosas, mas na realidade ficam cada vez mais impotentes. Aplicativos digitais podem não resolver a agressividade doméstica, mas talvez possam desobstruir a voz da vítima. 


Guilherme S. Hummel
Coordenador Científico - HIMSS@Hospitalar Forum 
EMI - Head Mentor