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Farmácia Online: drogarias de bairro em novo endereço (digital)

Pandemia turbina varejo farmacêutico online

Seus dias de deslocamento em busca de um medicamento, tentando várias farmácias diferentes e ligando dezenas de vezes comparando preços podem estar ficando no passado. Depois da invasão da Teleconsulta, avança com determinada ascensão a não menos disruptiva Farmácia Online.  O varejo farmacêutico digital, também conhecido como ePhamarcy, está sendo propelido pela Covid-19 a níveis nunca antes previstos. Como o comércio eletrônico, a farmácia eletrônica ‘entrega’ o que se espera: conveniência, preço, distanciamento social e consultoria online, itens cada vez mais difíceis no varejo farmacêutico físico. 2020 entrará para a história por pelo menos duas razões: foi o ano em que pessoas, empresas e mercados mundiais foram abalados pela Covid-19; e o ano em que ocorreu a mais extraordinária migração digital dentro da cadeia global de saúde. Daqui para frente, notadamente no varejo farmacêutico, serão tempos de grandes transformações e turbulências. O setor terá que lidar rapidamente com a realidade “quem mexeu no meu queijo”, onde a loja física será questionada à exaustão.

O mercado global de ePharmacy foi avaliado em US$ 49,7 bilhões em 2018 (fonte: Fortune Business Insights), mas as projeções para 2026, que devem ser publicadas nos próximos meses (já considerando a pandemia), podem chegar a meio trilhão de dólares (pesquisa [2] do Omnicom Media Group mostrou que 86% das pessoas usaram uma farmácia online pelo menos uma vez em 2019). Um dos exemplos dessa euforia foi a divulgação [3] da Amazon Pharmacy, ocorrida na segunda semana de agosto, informando que a empresa está fazendo sua estreia na Índia, começando por Bangalore mas podendo se estender por inúmeras outras cidades. O serviço da Amazon passa a oferecer no país medicamentos sem receita médica, drogas ayurvedas e outros serviços básicos de saúde objetivando “atender às necessidades essenciais dos clientes e mantendo-os seguros em casa”. O próprio Jeff Bezos anunciou US$ 1 bilhão de investimentos no país. A empresa emprestou sua assustadora máquina digital ao varejo farmacêutico em 2017, comprando no ano seguinte a startup norte-americana PillPack (medicamentos à domicílio). Em janeiro de 2020 entrou com um pedido de registro da marca Amazon Pharmacy no Reino Unido, Austrália e Canadá, dando um sinal claro de seu apetite num dos mais cobiçados negócios deste século: ‘medications by web’. Vale salientar que só os EUA movimentam cerca de US$ 500 bilhões anualmente na venda de medicamentos, sendo a farmácia sua segunda maior categoria de varejo.

Basicamente as farmácias online se posicionam em quatro perfis: (1) os varejos digitais independentes, (2) as filiais online de farmácias físicas; (3) os websites que mantem alianças com as redes varejistas (regionais) e (4) as ‘rogue pharmacies’, ou seja, o mercado pirata, fraudulento e ilegal da venda de medicamentos pela Internet. Quanto a este último, todos os países do ocidente e (alguns) do oriente afiam suas garras para duplicar o controle, a regulação e a penalização. A preocupação se justifica, ficando claro que no século XXI todo e qualquer e-commerce será cada vez mais regulado, sendo no caso da Saúde pelos órgãos de vigilância sanitária de cada país. A Comunidade Europeia, EUA e Canadá, por exemplo, já exigem selos de certificação no website da farmácia online, mas o controle pode ser intensificado de forma exponencial. Em julho último, o The Dahdaleh Institute (York University), no Canadá, organizou um painel [4] sobre “Promoção dos direitos humanos e acesso a medicamentos nas pandemias: o crítico papel das farmácias na Internet”. O tema envolveu especialistas do mundo todo esclarecendo as questões de governança e jurisdição das farmácias online. O debate saiu da esfera comercial entrando cada vez mais nos direitos humanos, já que a Resolução da ONU, de 2017, estabelece “o direito de todos ao gozo do mais alto padrão possível de saúde física e mental, incluindo acesso a medicamentos essenciais". No painel do Dahdaleh Institute, um marco claro foram os Princípios de Bruxelas [5], publicados em 2016 e que expressam pareceres sobre a venda de drogas na Web. A preocupação incisiva refere-se à corrupção, abuso do poder capitalista e a proliferação de medicamentos falsos. O speech do Dr. Aria Ilyad Ahmad, pesquisador da York University, trouxe talvez a maior contribuição. Um de seus trabalho [6]s, apresentado em Berlim (2019), considera quais deveriam ser as normas internacionais de direitos humanos aplicáveis, e, principalmente, onde a moral e os interesses jurisdicionais se cruzam (e se chocam). O estudo também aborda a confusão regulatória entre as nações.   

A regulamentação do varejo farmacêutico digital é feita pelos Governos e suas entidades reguladoras, mas como não existem fronteiras físicas no meio digital os aspectos transfronteiriços das farmácias online envolvem um pântano fiscal, alfandegário e com normas sanitárias confusas e desconexas. Embora a demora em equalizar esses interesses tenha sido grande, o coronavirus insufla a velocidade do processo, visto que todas as demandas regulatórias se minimizam diante dos benefícios ao consumidor, como, por exemplo: (1) Registros de dados: todo e qualquer medicamento adquirido pode ser mais facilmente rastreado, reduzindo os problemas de automedicação, abuso de drogas e pirataria; (2) Conveniência: facilidade na solicitação dos medicamentos, sendo feita diretamente por dispositivo eletrônico que mitiga a necessidade do paciente estar pessoalmente no varejo físico; (3) Autenticidade: medicamentos falsificados podem ser melhor rastreados até seus fornecedores, fabricantes ou canais atacadistas por meio de sistemas de georreferenciamento com inteligência artificial; (4) Educação: as farmácias eletrônicas possuem infraestrutura tecnológica para fornecer informações essenciais aos consumidores, como os substitutos mais baratos, alertas de ingestão, efeitos colaterais, interações medicamentosas, etc., aumentando a conscientização sobre o efeito das drogas; (5) Preço: pesquisas mostram que o preço dos medicamentos no varejo online é um dos fatores essenciais para sua adoção. Estudo [7] publicado em 2020 na BMC Medical Informatics mostra que o preço é o segundo item mais importante para adesão a uma online pharmacy.

Os players do setor de ePharmacy nos EUA, que representa mais de 45% do mercado global, precisam ser registrados e aprovados pela NABP, no Canadá pelo ICANN e no Reino Unido, com mais de 2 milhões de britânicos comprando regularmente em farmácias online, o registro do varejista virtual precisa ser realizado em vários órgãos. Aliás, a primeira farmácia online do Reino Unido (Pharmacy2U), começou a operar em 1999, tendo o NHS regulamentado o setor desde 2005. A Índia, por outro lado, enfrenta suas próprias lutas com o caótico crescimento do varejo eletrônico. Novas regras emitidas nos últimos três anos foram responsáveis ​​pelo avanço descomunal das vendas online, com um estudo [8] mostrando que elas já representam 3% de todas as vendas farmacêuticas na Índia. A França, que autorizou a venda de medicamentos online (OTC) em 2012, já tem hoje 2,3% de suas 21 mil farmácias com atuação online, segundo trabalho [9] da Klass Consulting. Na Alemanha o número total de unidades online já é de 14% de seu parque varejista. Uma das grandes questões em jogo é saber se a manufatura farmacêutica e os grandes atacadistas vão acelerar sua participação vertical no mercado online, já que as big-techs, como a Amazon, cobiçam o seu quintal de forma crescente e rápida.

O Brasil, com cerca de 87 mil farmácias (dados de 2018 do Conselho Federal de Farmácia), tem a Anvisa como seu órgão regulador, que dispõe, entre outras regras, da casuística concepção de que só pode ser varejo online quem também for varejo físico. Durante a pandemia, várias concessões foram feitas pela agência, mas pouco se sabe sobre o pós-covid. Dados da Abrafarma, coletados com seus afiliados (45% do comercio farmacêutico do país), mostram que as vendas online cresceram entre janeiro e junho de 2020 perto de 106% a mais do que o registrado no mesmo período de 2019 (comparando: o faturamento geral do varejo farmacêutico cresceu 7,74% no mesmo período). Esse crescimento coloca em marcha uma das mais importantes transições digitais dentro da cadeia nacional de saúde. Enquanto esperamos que a engrenagem cultural-regulatória-jurídica progrida e se reinvente, o avanço do varejo online corre o risco de ser similar ao que ocorreu nos últimos cinco meses com o não menos complexo ambiente da Telemedicina: em poucas semanas o connected-health decolou como um projétil, deixando os céticos e retardatários balbuciando um velho e sábio raciocínio: “enquanto uns choram, outros vendem lenços".

 

Guilherme S. Hummel

Coordenador Científico - HIMSS@Hospitalar Forum

EMI - Head Mentor