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Aviação comercial tenta decolar sem resolver o ‘assento do meio’

A Covid-19 dentro dos voos

O voo VN54 partiu de Londres às 11h10 no primeiro dia março de 2020, chegando 10 horas depois em Hanói. Um total de 16 tripulantes e 201 passageiros estava a bordo. Os profissionais de saúde já haviam examinado cada passageiro no embarque, pedindo-lhes para relatar quaisquer sintomas potenciais da Covid-19. Uma empresária de 27 anos não informou que estava com dor de garganta e tosse. Os sintomas da passageira progrediram nos dias seguintes, com teste positivo para o coronavirus em 6 de março. O rastreamento de contatos subsequentes revelou que apenas naquele voo a passageira havia transmitido o vírus a outros 15 passageiros, que por sua vez podem ter contaminado uma centena de outros indivíduos. Esse estudo de caso é descrito minuciosamente no recente relatório “Transmission of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 During Long Flight” [2], publicado em setembro pela agencia norte-americana CDC (Centers for Disease Control and Prevention), mostrando evidências de que o coronavírus pode se espalhar nos aviões em voos longos. Dos infectados, 12 passageiros estavam na classe executiva com apenas um deles sentado a dois ou menos assentos de distância da passageira. Ou seja, 92% de todos os passageiros sentados na proximidade do assento da empresária se infectaram. Os pesquisadores não descartam a possibilidade dos passageiros terem se infectado de outras maneiras, mas notaram que, em 1º de março, o Reino Unido tinha apenas 23 casos registrados de Covid-19, e no momento em que chegaram ao Vietnã o país tinha registrado apenas 16 casos, o que torna improvável que tenham contraído a doença depois que deixaram o aeroporto. “As últimas orientações da indústria de viagens aéreas internacionais classificam o risco de transmissão em voo como muito baixo e recomendam apenas o uso de máscaras faciais sem medidas adicionais para aumentar a distância física a bordo, como bloqueio dos assentos do meio”, afirmam os pesquisadores. "Nossas descobertas desafiam essas recomendações", completam.

Entre tantas piruetas que o mundo vai dar em 2020, uma delas deveria acontecer dentro da aviação civil e nas garagens da indústria manufatureira de aeronaves. Nos últimos anos, a indústria de automóveis, por exemplo, mostrou mais do que melhorias na segurança e na cadeia energética. Entre outras disrupturas, o setor automotivo já quase eliminou o combustível fóssil, está eliminando o motorista e a ‘dronagem [3]’ (VANTs - veículos aéreos não tripulados e controlados remotamente) deve em poucos anos até tirar os veículos do solo. Na aviação civil, por outro lado, só temos notícias não muito animadoras: a credibilidade de recém lançadas aeronaves está sendo dizimada por acidentes aéreos, o atendimento aos usuários não para de arriar, os aeroportos tornaram-se maquinas de gerar impaciência, sem falar que poucas são as companhias aéreas que não estão no vermelho (mesmo antes da pandemia). O setor de aviação comercial já vinha sendo uma ‘geni’ antes da epidemia, depois da covid-19 conseguiu atrair mais desconforto e dúvidas. Que os voos estão cada vez mais seguros ninguém duvida, mas o binômio avião & aeroporto ainda destila desconfiança no quesito transmissibilidade viral.

Na seara do passageiro, o ‘nó-górdio’ da aviação civil está no insolúvel assento do meio”, aquele encantado lugar intermediário localizado nas fileiras com três ou mais poltronas. Um estudo [4] do MIT Sloan School Of Management, publicado em julho de 2020, mostrou resultados de uma viagem de duas horas (classe econômica), com um único passageiro contaminado com a Covid-19. Os cálculos mostraram que quando todos os assentos são vendidos e ocupados, a probabilidade de outro passageiro próximo ser contaminado é de 1 para 4.300. Mas se os ‘assentos do meio’ forem bloqueados o risco cai para 1 em 7.700. Considerando que as probabilidades de um acidente aéreo hoje serem de 1 para 34 milhões, fica claro que as chances de infecção pela Covid-19 em aviões de carreira são bem maiores, ainda mais se estivermos apertados no temível assento do meio.

Com uma média superior a 3 bilhões de passageiros anuais se deslocando pelos céus do mundo (sem covid), é fácil de entender por que a pandemia se disseminou por meio dos voos aéreos. O assento intermediário não é um tema novo. Em 2018, estudo [5] publicado pela University of Florida, fez uma minuciosa varredura científica em 10 voos transcontinentais. Ainda que os resultados tenham sido animadores sob a ótica da transmissibilidade, deixa claro que um passageiro pode infectar outro num raio de 1 metro de distância (sem máscara), e que o melhor assento do avião é a poltrona da janela: longe do corredor o passageiro tem cinco vezes menos ‘encontros’ com outras pessoas, o que diminui as chances de contato com alguém infectado (assentos perto dos banheiros são ainda piores: local onde os passageiros mais se aglomeram). Sem falar na pesquisa [6] publicada em agosto último na JAMA Network (American Medical Association), que avaliou um voo de Tel Aviv a Frankfurt em março de 2020, com 102 passageiros sem mascaras a bordo (Boeing 737-900). Com duração de 4 horas e 40 minutos, 7 pessoas testaram positivo (SARS-CoV-2) quando de seu desembarque, sendo que nenhuma delas apresentou sintomas ou queixas no embarque. Quatro dos 7 eram sintomáticos (durante o voo), 2 eram pré-sintomáticos e 1 permanecia assintomático.

O assento intermediário é o ‘patinho feio’ da aviação comercial. Sempre foi. Enquanto os voos hoje trafegam com baixa ocupação devido ao coronavirus, o ‘pato’ fica esquecido e bloqueado. Mas a poltrona do meio, aos poucos, sem muito alarde, vai sendo liberada pelas companhias aéreas, embora algumas “jurem” que ainda não é hora, como a JetBlue, que bloqueou os assentos intermediários até meados de outubro, ou a Hawaiian Airlines que vedou os patinhos até segunda ordem, ou ainda a gigante Delta Air Lines que anunciou bloqueio dos assentos do meio até o ano novo.

O fato é que ninguém ama o ‘assento do meio’. Se você está “preso” nele, sempre convive com um dilema: “afinal, quem é o dono dos apoios de braço dessa poltrona?” Obter acesso a uma ‘vaga de estacionamento’ para cotovelos na poltrona do meio sempre significou uma cuidadosa, silenciosa e altruísta negociação. Assumir o apoio braçal nas ‘intermediárias’ não poucas vezes leva a rusgas ou cara feia por longas horas de voo. Sem falar que as ‘dimensões dos passageiros’ influem diretamente nessa pequena guerrilha de cotovelos. As companhias aéreas simplesmente ignoram essa colisão de interesses. Não há garantias de que a pendenga do assento do meio seja equacionada pela companhia aérea ou pelas Agências Públicas responsáveis. Se estamos num ‘dia-bom’ e cedemos os ‘braços’ aos colegas laterais somos generosos. Nos ‘dias-ruins’, somos egoístas. Todavia, quando o assunto é a transmissão de um poderoso e assustador vírus, as coisas podem ficar mais delicadas.

No transporte automotivo, por exemplo, os avanços já se apresentam: a indústria de carrocerias para transporte rodoviário, Marcopolo, simplesmente eliminou a fileira do meio em seu novo ônibus [7] (três linhas de poltronas com dois corredores intercalando). Em contrapartida, na aviação comercial as poltronas da Classe Econômica só diminuem de tamanho, os preços navegam ao sabor do fee-for-service (sim, tal qual a Saúde), e os assentos do meio permanecem impávidos sob a alegação de que é inviável para os custos do setor a sua simples eliminação. O setor aeronáutico planeja pousar em Vênus, usar combustível de hidrogênio [8] em 2035 e levar turistas à Lua. Por outro lado, o sonho dos passageiros é bem mais simples: poder movimentar minimamente as pernas, libertar braços e cotovelos e não desembarcar contaminado. 

Guilherme S. Hummel

Coordenador Científico - HIMSS@Hospitalar Forum

eHealth Mentor Institute (EMI) - Head Mentor