“Eu estava sendo mantida refém por um homem desagradável com uma arma, e a única coisa que preocupava meus entes queridos era o fato de que eu não tinha sido capaz de preparar o jantar". “Sonhei que estava preso no mar com milhares de aviões explodindo em um céu vermelho, com destroços caindo ao meu redor”. “Meu sonho era uma aventura em terras distantes, explorando e conhecendo novas pessoas que eu nunca tinha visto, acordando triste porque nunca mais iria vê-las”.
Esses são alguns exemplos de sonhos publicados pela Medical News Today quando os leitores foram convidados a revelar seus sonhos durante a pandemia. Resumo: o vírus consome nosso dia e ainda sequestra nossas noites. Uma pesquisa recente realizada no Reino Unido pela The Sleep Charity and Sleepstation, mostrou que 75% das pessoas entrevistadas sofrem distúrbios de sono devido a Covid-19, enquanto 77% relatam que a falta de sono interferiu diretamente em seu desempenho diário. Como se não bastasse, 39% delas estão dormindo mais tarde e 30% acordando mais cedo. A ‘simplória contagem dos carneirinhos pulando cerca’, originária de um texto espanhol do século XII (Disciplina Clericalis), revelando que os pastores só conseguiam dormir com tranquilidade após a contagem do rebanho, também foi minimizada pela pandemia: nunca foi tão difícil esquecer as notícias epidêmicas-diárias e cair no sono noturno. Essa insônia pandêmica tem nome: coronasomnia.
Deirdre Barrett, Ph.D., professora de psicologia na Harvard Medical School, autora de vários livros entre eles “Pandemic Dreams”, vai direto ao ponto: “Definitivamente, desde o começo da pandemia as pessoas estão relatando mais recordações de sonhos, ou sonhos mais vívidos, ou mais bizarros e carregados de ansiedade”. Para seu livro, Barrett conduziu uma pesquisa com 3.700 indivíduos em todo o mundo, que descreveram perto de 9 mil sonhos ocorridos após o início da pandemia. A pesquisa mostra um aumento claro das fobias causadas pela epidemia, fazendo com que o pânico e a ansiedade se tornem a ‘criptonita’ do sono profundo. “Desde o início da pandemia, mais de 35% das pessoas passaram a relembrar seus sonhos”, ressalta Barrett. Ela descobriu também que no surto epidêmico os sonhos passaram a se agrupar em categorias, como os sonhos literais de contaminação pelo vírus; os sonhos metafóricos, nos quais alguém é ameaçado por ‘enxames de insetos venenosos’; ou os sonhos que envolvem estarmos fora do distanciamento social (ou esquecendo a máscara), sendo cercados por pessoas que as tocam, tossem, etc. Sonho-dark não é novidade: Barrett e outros pesquisadores já analisaram, por exemplo, os sonhos após os ataques de 11 de setembro, ou aqueles descritos pelos prisioneiros de guerra, ou dos kuwaitianos durante a ocupação iraquiana em 1990. Os resultados só demonstram o mesmo que a coronasomnia: os indivíduos experimentam sonhos muito mais angustiantes em tempos de estresse extremo. A poetisa inglesa Charlotte Bronte já descrevia isso no século XIX: “Uma mente confusa faz um travesseiro inquieto”.
Quantos sonhos ultimamente você ouviu alguém contar que expressavam ansiedade, medo ou solidão? Nos últimos meses, quantas vezes você acordou durante a noite buscando ‘oxigênio pelos cantos da casa’? O vírus não tem hora para contaminar, mas é durante as noites que ele inocula nossas mentes. É na hora de dormir que o coronavirus, traiçoeiro, debilita o sleep-start, afugenta os carneirinhos e pulveriza nosso REM (Rapid Eye Movement), aquela fase em que o sono deveria ser mais sonhador. Sonhos são essencialmente uma mistura de múltiplas experiências, informações, estímulos e eventos (um espectro do que experimentamos na vida desperta). Durante o REM, essa abundância de informações é classificada de acordo com nossa hierarquia de importância, de modo que os dramas e traumas tendem a ser armazenados na memória de longo prazo (tentativa de esquecê-los). Nos dias atuais, essa hierarquia passou a ser anarquia, onde a cesta de notícias ruins acumulada ao longo do dia nos impede de ‘contar ovelhas’ ou qualquer outra coisa. Barrett identificou um tema distinto nos sonhos coletados na Covid-19: ataque de insetos. “Eu não tinha visto isso nas outras crises e desastres que estudei. Eles parecem ser uma metáfora única para o vírus”, explicou a pesquisadora. A psicóloga Candice Alfano, Ph.D, professora e diretora do Sleep and Anxiety Center Houston (University of Houston), nos lembra que uma das formas de processar e superar uma experiência traumática é, por exemplo, sonhar com ela. “Os sonhos são pensados para separar as partes factuais (reais) das experiências de alta carga emocional. Embora esses sonhos noturnos possam ser perturbadores, as pessoas precisam lembrar que eles significam que o REM está fazendo o seu trabalho. Estamos enfrentando muitas coisas perturbadoras, ameaçadoras e incertas, que se refletem em nossa vida-de-sonho”, explica Alfano. Não menos diferente são os sonhos dos profissionais de saúde que estão no front do coronavirus: “Seus sonhos parecem com TEPT (transtorno de estresse pós-traumático), quando tentam colocar um tubo de ventilação em alguém, ou suas vias aéreas estão muito apertadas, ou o ventilador está saindo do paciente, ou a máquina está com defeito...etc. Eles sonham com pessoas que estão prestes a morrer, e que dependem deles para salvá-las, mas que não há nada que possam fazer”, explica Barret. O prejuízo na saúde mental dos médicos envolvidos com a Covid-19 fica evidente no descanso noturno: quase 40% sofrem de insônia.
Os terapeutas costumam convergir na ideia de que sonhos são uma espécie de “terapia da noite para ajudar a resolver os problemas do dia”. Todavia, outra pesquisa (“Behavior: How a Global Social Lockdown Unlocks Time for Sleep”) mostra a força da ‘criptonita-coronoviana’: podemos dormir mais, mas não necessariamente melhor. Adoramos a dopamina, nosso adorável produto químico que entrega recompensa. Porém, no momento, há pouca coisa que possa nos recompensar além de chocolate, vinho e streaming. Sem recompensa (não artificial), a má qualidade do sono afeta o cérebro. Uma noite sem dormir nos deixa 30% mais ansiosos, com nossas amígdalas cerebelosas (que processa as emoções) até 60% mais reativas. “Portanto, teremos muito mais probabilidade de sermos reativos ou impulsivos em nossas respostas aos acontecimentos, pensando e raciocinando menos em cada um deles”, explica a neurocientista Lila Landowski, da University of Tasmania (Austrália).
A fadiga afeta nossa coordenação, porque afeta o centro de equilíbrio de nosso cérebro (cerebelo). Exemplo: uma noite de sono perdida equivale a uma ‘concentração de álcool no sangue de 0,1’, cujas reações podem ser: entorpecimento fisiológico, diminuição da atenção, reflexos mais lentos, redução da capacidade de tomar decisões racionais, ansiedade, e, principalmente, diminuição da paciência. Nesse sentido, a dra. Landowski dá uma dica notável para os tempos atuais: “Se você mora sozinho, mantenha-se conectado com as pessoas por meio das chamadas telefônicas ou chats de vídeo, e não por mensagens de texto. Embora essas mensagens, como WhatsApp, ativem a via de recompensa do cérebro, isso não faz com que ele libere a ocitocina, que reduz o estresse. Já um telefonema faz as duas coisas”. Embora muitos cientistas e pensadores insistam em desdenhar os sonhos (não lúcidos), a relação entre bem-estar e sonhos está cada vez mais clara, como mostra o estudo “Our Dreams, Our Selves: Automatic Analysis of Dream Reports”, publicado em agosto último pela Royal Society Open Science. A pesquisa mostra também como os sonhos hoje podem ser analisados por algoritmos. O estudo validou 24 mil relatórios de sonhos, testando a chamada 'hipótese de continuidade' (sonhos como uma continuação do que acontece na vida cotidiana), cujos resultados algorítmicos foram 76% iguais as pontuações obtidas pelos terapeutas.
“Dormir e sonhar como os anjos”, enfim, passou a ser uma batalha diária. Sempre é bom lembrar que durante o sono liberamos as citocinas, que aumentam quando somos confrontados com uma infecção ou inflamação. Assim, a privação do sono pode reduzir a produção das citocinas protetoras, que também reduzem os níveis de anticorpos e células que combatem as infecções (Mayo Clinic). Ou seja, dormimos pior pelo medo da Covid-19, e a probabilidade de contágio aumenta quando dormimos pior. Não há fuga, só nos resta a resignação, a paciência e os pequenos prazeres. Nesse sentido, sempre é bom voltarmos a Freud, que em seu livro “Mal-estar na cultura” (1930) expressa seus ‘pequenos deleites’ em contraste metafórico com a ascensão do nazismo e os medos da vida moderna: “...é como o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das cobertas numa noite fria de inverno, e depois simplesmente recolhê-la”.
Guilherme S. Hummel
Coordenador Científico - HIMSS@Hospitalar Forum
EMI - Head Mentor