“Quando a cultura moderna admitiu que havia muitas coisas importantes que ainda não sabíamos, e quando a admissão da ignorância se casou com a ideia de que as descobertas científicas poderiam nos dar novas capacidades, as pessoas começaram a suspeitar de que o progresso real poderia, afinal, ser possível. A pobreza, a doença, as guerras, a fome, a velhice e a própria morte não eram o destino inevitável da humanidade. Eram simplesmente o fruto de nossa ignorância. A Revolução Científica não foi uma revolução do conhecimento, mas acima de tudo foi uma revolução da ignorância”. Sempre é bom relembrar Yuval Harari e sua transcendental obra “Sapiens”, principalmente em tempos obscuros e dramáticos, onde aceitar nossa ignorância sobre inúmeros temas passou a ser um ato de coragem. Como expressa Harari, admitir nossa insciência e desconhecimento é o que nos permite avançar como civilização. O cabal exemplo é a própria Covid-19, que nos mostrou o quão insuficientes ainda somos com relação a natureza biológica. Reconhecer nossa ignorância é aquela centelha que nos desloca para o futuro.
Dúvidas consomem e assolapam nossas certezas todos os santos dias: o coronavírus nos pilota, nos dá ordens como um ‘imperador-romano’ e se mostra corrosivo quando o noticiário matinal golpeia nossas mais tênues convicções. Todavia, essa mesma incerteza, esse oceano de dúvidas, é que pilota o avanço da ciência e da tecnologia. Como explicou Harari, é a nossa ignorância que incendeia a pesquisa e o desenvolvimento digital. Nossa impotência em resolver os problemas mais ordinários, como, por exemplo, enviar ou não os filhos de volta as aulas, é que inspira uma legião de pesquisadores a descobrir incríveis saídas para inúmeros problemas de nossa geração. A máscara facial inteligente é um bom exemplo de nossa capacidade de ‘contra-ataque’.
É provável que ainda demore algum tempo para nos livrarmos da proteção facial; talvez demore muito tempo. Mesmo com a imunidade coletiva (com ou sem vacina) é pouco provável que nos próximos 18 meses alguém entre num cinema com 200 pessoas sem usar uma covid-mask por segurança. Certamente que a pesquisa aplicada percebe essa enorme incerteza, e, seja por altruísmo, colaboração ou apenas apetite por lucros, desenvolve todos os dias inovações surpreendentes nas máscaras faciais. Cientistas do Instituto Wyss (Harvard University) e do MIT, por exemplo, criaram um sensor que emite luz fluorescente quando é ativado pelo coronavírus, podendo ser incorporado a uma máscara para prevenir a Covid-19. O sensor detecta o vírus (sem equipamento laboratorial) quando as partículas respiratórias liberadas pela respiração, tosse ou espirro se fixam nele e o ativam. Apenas uma pequena sequência do vírus é necessária para ativá-lo, detectando inclusive diferentes cepas virais. Os pesquisadores modificaram uma tecnologia já existente, que foi projetada e bem sucedida na detecção do vírus Ebola, em 2014 e depois no surto da Zika, em 2016 (os sensores também podem detectar SARS, sarampo, gripe, hepatite, etc.). Com isso, identificaram ser possível incorporar os sensores diretamente nas máscaras faciais contra o coranavirus, com custo mais baixo (cerca de US$ 25) que um teste laboratorial. Divulgado em maio, o projeto está na fase de testes, que incluem opções de manufatura em escala para viabilizar a chegada da máscara-detetora ao mercado. Vale salientar que não se trata de uma ‘ciência nova’ ou de uma ‘tecnologia emergente’, mas tão somente aproveitar um legado consagrado para acrescer nossa resistência ao patógeno.
Na mesma direção, surgiu a tecnologia têxtil inteligente HeiQ Viroblock NPJ03, do grupo suíço HeiQ Materials AG (especializado em compostos químicos). Foi projetada para eliminar uma série de bactérias e vírus que entram em contato com a superfície do tecido. A tecnologia está sendo licenciada para vários produtores, como a ViroMasks, dos Emirados Árabes Unidos. Segundo a empresa suíça, o material HeiQ Viroblock NPJ03 foi “testado com eficácia de 99,99% após 30 minutos de contato com o SARS-CoV-2”, com ensaios realizados pelo Peter Doherty Institute for Infection and Immunity em colaboração com a University of Melbourne. Grosso modo, o tecido inibe o crescimento e a persistência do vírus envelopado nas superfícies têxteis. Várias marcas estão sendo lançadas no mercado com a mesma tecnologia, como as reutilizáveis da Fine Hygienic (com tecnologia têxtil Livinguard) que também podem neutralizar nano-organismos como o coronavírus. Aliás, tecidos inteligentes não param de ser desenvolvidos para combate a Covid-19. Pesquisadores da Indiana University School, por exemplo, publicaram estudo mostrando que um tecido eletrocinético interrompe a infectividade do coronavírus ao entrar em contato. Da mesma forma, cientistas da Jadavpur University (Índia) também publicaram um interessante trabalho intitulado “Design of a Self-powered Smart Mask for COVID-19” mostrando como um nanogerador têxtil serve como filtro ao SARS-CoV-2. A startup italiana Cliu, por outro lado, está lançando a máscara Cliu-Pro, que possui luz ultravioleta no seu interior e permite a desinfecção em poucos minutos. Utiliza tecnologias do MIT, sistema Bluetooth, sensores e um conjunto de algoritmos capaz também de medir a qualidade do ar, a respiração e a frequência cardíaca, além de detectar uma fonte ativa do coronavírus por perto. Logo estará no mercado, e, como toda inovação neste século, logo será copiada e transformada em comodity. Em poucos meses, smart-masks serão vendidas em supermercados, no varejo virtual, incorporadas aos aplicativos dos smartphones e combinadas com outras funcionalidades, como áudio-headset, redutores de barulho ambiental, alertas de contágio, etc.
Surpreende a elevada quantidade de competências e aplicações que emergem em meio ao caos pandêmico. Trata-se de uma ‘radiação-renovadora’ que começou em janeiro, cresceu, ampliou sua ‘onda’ centenas de vezes e não tem data para obscurecer. Como explicar, por exemplo, mais de 17 vacinas sendo testadas simultaneamente em diferentes nações? A mega epidemia vai buscar nas entranhas do homem saberes inimagináveis, escondidos, disfarçados, que agora afloram a serviço de sua destreza. Fenômeno parecido com a tempestade de relâmpagos que acometeu a pipa de Benjamin Franklin no século XVIII, levando suas observações empíricas a criar o genial para-raios, que desarmou os ‘deuses’ que até então justificavam a hipótese do relâmpago. Um bom exemplo de radiação-renovadora é a empresa japonesa Donut Robotics. Premida pela Covid-19, endividada e sem recursos para sustentar seu corpo profissional, ela identificou rapidamente a demanda das máscaras inteligentes. Com recursos tecnológicos embutidos em seu robô Cinnamon, criado em 2016, a Donut desenvolveu sua C-Face Smart, um artefato facial que além de proteger o usuário do vírus é capaz de traduzir o japonês para 8 idiomas (inglês, chinês, francês, espanhol, coreano, vietnamita e indonésio). Fundada por Taisuke Ono e Takafumi Okabe, a empresa estava no começo de 2020 fornecendo serviços robóticos aos visitantes do Aeroporto Haneda, em Tóquio. A crise reprimiu sua alta tecnologia, quase os empurrando para fora de mercado. Conseguiram levantar US$ 800 mil em operação de crowdfunding e passaram a utilizar a tecnologia do Cinnamom para se reinventar em três meses. Sua smart-mask é construída em plástico e silicone, tem acesso Bluetooth e possui um microfone embutido que se conecta ao aplicativo do smartphone. A empresa vai lançar o produto no Japão em setembro, com produção entre 5 a 10 mil máscaras. O custo estimado está entre US$ 40 e US$ 50 e a empresa cobrará uma taxa mensal pelos serviços de tradução e transcrição. Não é só uma história de recuperação, mas de relâmpagos, empirismo e sorte.
Mas a ciência e a tecnologia não poderão responder a todas as nossas dúvidas e ignorâncias. Ainda há muito o que fazer com nosso senso de humanidade e civilidade. O negacionismo ainda espreita pelas ruas, contamina os pedestres e gera uma segunda onda de ignorância e contágio. Vamos ultrapassar a crise da Covid-19, mas ainda teremos que enfrentar por muito tempo a epidemia do obscurantismo e da inurbanidade. Começamos esse texto com Harari e terminamos com ele: “Pela primeira vez na história, hoje morrem mais pessoas que comeram demais do que de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de doenças infecciosas; e mais pessoas cometem suicídio do que todas as que, somadas, são mortas por soldados, terroristas e criminosos. No início do século XXI, o ser humano médio tem muito mais probabilidade de morrer empanturrado no McDonald’s do que de seca, de Ebola, ou num ataque da Al-Qaeda. Por isso, neste século, o gênero humano deve responder a si mesmo uma pergunta sem precedentes: o que vamos fazer conosco?”.
Guilherme S. Hummel
Coordenador Científico - HIMSS@Hospitalar Forum
EMI - Head Mentor