Tiered Telementoring Platform é uma estrutura em pirâmide encabeçada por um médico de cuidados intensivos orientando um médico de cuidados não-críticos, que por sua vez orienta enfermeiros de cuidados não-críticos, que por sua vez auxiliam uma equipe de cuidadores centrada em home-care. Nessa arquitetura em ‘camadas’, um médico virtual treinado em tratamento intensivo pode cuidar de 60 pacientes agrupados em enfermarias virtuais. Essa proposta do Exército dos EUA, denominada NETCCN, ou National Emergency Tele-Critical Care Network, deve vicejar o futuro das plataformas de Tele-UTI, que já são conhecidas e utilizadas em todo o mundo, inclusive no Brasil. A Tele-UTI permite aos médicos intensivistas acompanhar os pacientes remotamente. Permite também que médicos externos interajam com a equipe intensivista responsável por um determinado paciente. Assim, uma equipe de atendimento centralizado pode gerenciar em tempo real um grande número de UTIs geograficamente dispersas. A ideia da NETCCN nasceu de um grupo de médicos das forças armadas norte-americanas e foi publicada em maio deste ano no Telemedicine and e-Health Journal. Por mais estrambótica que possa parecer, o núcleo proposto pode ser a resposta para um dos maiores problemas da pandemia e do pós pandemia: mão de obra capacitada para tratar pacientes em cuidados intensivos. A Covid-19 expandiu a Telemedicina como nunca, mas deixou claro que mesmo remotamente (e com auxílio de máquinas inteligentes para suporte às decisões clínicas) não é possível operacionalizar o fluxo no intensive care sem mão de obra especializada. Nos últimos anos, as UTIs foram sendo cada vez mais ocupadas por equipamentos de alto desempenho, mas cada vez menos por profissionais capazes de lidar com eles e com os corpos neles conectados. Nesse sentido, a Tele-UTI veio para economizar recursos, melhorar a assistência intensiva, intensificar o uso inteligente dos dados, mas, principalmente, para estimular, acolher e proteger a mão de obra intensivista. A nova geração de Tele-UTIs já incorpora instrumentos, controles e algoritmos preditivos que podem, por exemplo, identificar pacientes com maior probabilidade de necessitar de uma intervenção nos próximos 60 minutos, permitindo aos intensivistas planificar os cuidados e acionar com antecedência a cadeia intra-hospitalar que gerencia o paciente. As aplicações de análise preditiva já estão sendo incorporadas as estações de Tele-UTI, podendo detectar sinais precoces de eventos adversos que podem passar despercebidos por longos períodos. Por outro lado, o chamado warning scoring (algo como uma pontuação automatizada de aviso prévio) permite aos profissionais da UTI desencadear respostas adequadas, precoces e mais assertivas quando acontece um quadro imprevisto. Enfermeiros do Hospital Geral Ysbyty Gwynedd (Maine, EUA), por exemplo, realizaram estudos relativos ao uso do warning scoring, detectando uma redução de 35% nos eventos graves e 86% nas paradas cardíacas.
A luta para os avanços das UTIs é longa e fascinante. No início dos anos 1930, oito em cada dez pacientes submetidos à uma cirurgia cerebral morria. Por melhor que fosse o cirurgião e os resultados obtidos na sala cirúrgica, o óbito era quase inevitável. Um recatado e pragmático neurocirurgião, Dr. Harvey Cushing, fez a diferença num momento em que a medicina parecia estar sendo vencida pela infecção bacteriana. Seu real reconhecimento veio da meticulosidade e preciosismo nos procedimentos pós-operatórios. Numa época em que não havia UTIs, Cushing cuidava pessoalmente das feridas cirúrgicas dos pacientes alocados em enfermarias comuns. Seu esforço foi a ‘antessala’ do que hoje conhecemos como Unidade de Terapia Intensiva. Terminada a Segunda Guerra Mundial, o atendimento pós-cirúrgico ganhou força e ciência. Como explica Richard Hollingham, jornalista de Ciência da BBC e autor de vários livros, entre eles ‘Blood and Guts: A History of Surgery’: “a terapia intensiva de Cushing era para eventos planejados (cirurgias) e não para um trauma, uma doença crítica, ou um evento emergencial. O que incentivou a criação das UTIs foram as epidemias, que na primeira metade do século XX dizimavam milhares de vidas quase todos os anos”. Em agosto de 1952, o Hospital Blegdam (Copenhagen), foi surpreendido com centenas de casos graves de poliomielite, que sem mecanismos para ajudar os pacientes a respirar acumulava óbitos seguidos. O único tratamento disponível era um sistema de respirador mecânico conhecido como “iron lung”. Esse duto de aço abrigava o paciente, que ficava apenas com a cabeça para fora. Foi o anestesista Bjorn Ibsen quem sugeriu “parar de forçar o peito a se expandir usando a pressão negativa fornecida pelo ‘pulmão de ferro’, e passar a forçar o ar diretamente nos pulmões através de um tubo”, como explicou Hollingham. Ou seja, Ibsen sugeriu um pequeno orifício no pescoço, logo abaixo da laringe (traqueostomia), que permitiria a inserção do tubo diretamente nos pulmões. Sua estratégia salvou uma legião de vidas e levou o Blegdam a estabelecer a primeira unidade de terapia intensiva (UTI) do mundo. Ibsen entrou para a história da medicina, e as UTIs entraram definitivamente para dentro dos ambientes hospitalares.
As Tele-UTIs (unidade de terapia intensiva telemonitorada) emergiram nos últimos anos com os intensos avanços da Telemedicina e, principalmente, com o crescente aprimoramento do conceito de Saúde Conectada. Um exemplo são as estações de VCC (Virtual Critical Care), um sistema de telemonitoramento móvel, contando com áudio bidirecional, vídeo de alta definição e capacidade de monitorar simultaneamente mais de 300 leitos de cuidados intensivos. Essas máquinas de rastreamento clínico intensivo emergiram com grande propulsão na Covid-19. A Índia, por exemplo, introduziu o Apollo eACCESS, um sistema de teleatendimento intensivo que já beneficiou remotamente mais 3 mil pacientes de cuidados críticos em Covid-19. O Apollo eACCESS Remote Intensive Care conecta unidades de terapia intensiva espalhadas pelo país a um centro de comando localizado em Hyderabad. O sistema monitora de forma remota (em tempo real) os pacientes das UTIs, gerenciando seus sinais vitais e o uso dos ventiladores, criando também alertas e aconselhamento sobre ritmos cardíacos irregulares. A Tele-UTI indiana, também chamada eICU ou ICU eletrônica, está sendo essencial para e gerenciar os casos de insuficiência respiratória grave. No Brasil, o Projeto de Tele-UTI do Ministério da Saúde está disponível aos hospitais com pacientes da Covid-19. A Fundação Santa Casa, por exemplo, possui um projeto de Tele-UTI que permite a construção e acompanhamento de planos terapêuticos que controlam metas diárias dos casos de insuficiência respiratória da Covid-19. O projeto é realizado em conjunto com o Hospital Albert Einstein, em colaboração com o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, HCor, Hospital Moinhos de Vento e Hospital Sírio-Libanês, que oferecem suporte à distância para 2500 leitos de UTI com pacientes do SUS. Não importa o quanto você acredita nas inovações, mas importa muito o quanto você faz em prol das coisas em que acredita. Seremos sempre agradecidos aqueles que acreditaram e ajudaram a desenvolver as UTIs, e aqueles que as revolucionaram através do controle à distância. É provável que a miniaturização e as ferramentas de inteligência artificial possibilitem, por exemplo, o uso crescente das UTIs residenciais. Ficaremos em casa, adoeceremos junto as nossas famílias e quando necessário ligaremos nossos ventiladores no criado-mudo, acompanhados remotamente pelos especialistas. E quando a hora inevitável por fim chegar, e nada mais for possível fazer, serenamente deixaremos a quarentena.
Guilherme S. Hummel
Coordenador Científico - HIMSS@Hospitalar Forum
EMI - Head Mentor