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O desejo de dizer adeus numa Live

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As chamadas de vídeo aliviando a dolorosa perda pela Covid-19

Nos primeiros dias de março, Mike Farley começou a tossir enquanto assistia TV em casa com amigos e a esposa Nancy. Constrangidos, as visitas se despediram deixando o casal a sós. Algumas horas depois Mike acusava febre. Foram ao médico, que receitou antibióticos. Voltaram para casa e cinco dias depois deram entrada na emergência do Swedish Medical Center, em Denver. Mike foi internado, mas pelas normas da Covid-19 sua esposa não pôde acompanhar o marido, sendo essa a última vez que se viram presencialmente. ‘Pneumonia bilateral’, informou o hospital enquanto ela ainda estava na recepção. Mais tarde o casal falou pelo telefone e uma gentil enfermeira ensinou Mike a conectar o FaceTime pelo smartphone. Logo a família toda conversava com ele por chamadas de vídeo, enquanto seus níveis de oxigênio despencavam. Foi transferido para a UTI e os dias seguintes foram doloridos, mas a família permanecia conectada com ele pelo celular. Conversavam enquanto ele lutava para buscar ar no pulmão. Queria desesperadamente falar aos filhos e a Nancy o quanto os adorava e o quão era agradecido a todos. Numa das últimas vídeo-conversas, explicou que sua vida tinha sido digna, boa e optou por fazer uma escolha corajosa: pediu para desligarem o ventilador, que foi utilizado por outro paciente com menor gravidade. No domingo à noite, conversaram por cinco minutos. Ele estendeu a mão esforçadamente e, como sempre, se despediu da conversa virtual, não sem antes ouvir do filho John: “Oh, pai, estou ansioso para abrir o FaceTime amanhã e conversar novamente com você”. Com mínimas energias, Mike respondeu que não tinha certeza de que isso ocorreria, mas esperava que sim. Foi a última vez que conversaram. Mike morreu cinco dias depois de entrar no hospital e como em quase todos os casos graves da Covid-19, faleceu sozinho. Separado da família, mas com seu tablet ao pé do leito. 

Com mais de um milhão de infectados, boa parte dos quase 60 mil mortos não teve a chance do último adeus. Os que têm mais sorte morrem com o olhar compassivo de um médico ou de uma enfermeira, rostos petrificados e desconhecidos até alguns dias antes. A maioria fica sem ao menos um aperto de mão. Não há mais rituais, nem despedidas ou palavras de compaixão e agradecimento. Os hospitais têm pressa de liberar os leitos porque a fila é grande e a possibilidade de contágio maior. Netos que acompanharam os avós até o hospital nunca mais os viram. Às vezes, a única compaixão final pode ser testemunhada através da tela de um celular, que as enfermeiras gentilmente seguram para uma última palavra de consolo. 

Em entrevista, uma enfermeira de Turim explicou: "com meu celular, ajudei uma mãe a se despedir de seus quatro filhos".  Disse ela ao filho mais velho: “junte todos os quatro, mas protejam-se com máscaras. Reúnam-se logo. Em seguida ligue para este número para uma vídeo-chamada... e dê o seu... Eu vou te mostrar sua mãe. É um gesto pequeno, mas pelo menos não será interrompido e você poderá vê-la. Abra a chamada de vídeo quando todas as quatro crianças estiverem lá”. A paciente não esperava por isso e ficou radiante. A ligação durou cerca de meia hora, e ela resistiu apenas um pouco mais do que isso, o suficiente para vê-los e cumprimentá-los. Na entrevista, a enfermeira explicou seu coração despedaçado, sempre imaginando ela e seus próprios filhos. Esse relato foi publicado no Facebook pelo prefeito de Volvera (Itália), Ivan Marusich, revelando o testemunho para inspirar a todos. 

Uma Live pode ser a única coisa que a tecnologia digital possa fazer por um moribundo e por sua família. Um smartphone ou tablet podem ser a única diferença entre a angústia e a dignidade de uma morte-covid-19. Movimentos surgiram na Itália (“the right to say goodbye”) e na Espanha (“acortando la distancia”) incentivando a doação de tablets para que o adeus fosse possível, sempre que todos os lados concordassem (paciente, família e enfermagem). Se podemos disponibilizar o acesso as Lives para encontros formais, acadêmicos, organizacionais e até íntimos, podemos pensar nesse mecanismo digital para abençoar as últimas palavras. Raciocinar que a expressão “sempre te amei” é algo óbvio e previsível nessas circunstâncias, podendo até levar a mais sofrimento, é discutível. As experiencias mostram que na maioria dos casos de goodbye-live ocorre uma indulgencia multilateral de grande efeito inspirador, que pode encher o paciente de serenidade e paz. 

As tecnologias digitais vão ajudar as salvar vidas, vão informar a sociedade provendo comunicação de todos com todos, sem falar no apoio que fornecem para organizar minimamente o mundo nessa armadilha pandêmica. Em uma cosmologia de isolamento, as Lives estão enchendo as telas de nossos devices. Acontecem em todos os países, com todas as idades, envolvendo múltiplas intenções. O Brasil finalmente alçou voo na Teleconsulta, que vai reduzir flagelos e redefinir as relações entre médicos e pacientes. Novos tempos e novos desafios. A mesma videoconferência poderia ser implementada no coração das UTIs para inspirar e proteger o paciente terminal em suas últimas aflições. Com os funerais se transformando em ritos contra a contaminação, as Lives podem dar as famílias e amigos a chance de uma despedida digna e minimamente afetuosa. Muitos hospitais já estão implementando essa iniciativa, sendo que em breve quase todos o farão. O pulso pode parar e a vida desaparecer, mas o adeus digital nunca sairá da mente de cada um dos envolvidos. 


Guilherme S. Hummel
Coordenador Científico - HIMSS@Hospitalar Forum 
EMI - Head Mentor

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